Sobre HARU (1996), ou: como ter certeza que é seu webnamorado a 200km/h
Hoshi vê o trem passar
Na virada do milênio, um trem-bala viaja a 200km/h sobre trilhos e a luz viaja a 200km/s por cabos de fibra ótica. Em Haru (1996), é na interseção entre essas duas velocidades que os protagonistas decidem se ver pela primeira vez: ele, Haru, à bordo de um trem bala, ela, Hoshi, num terreno vendo-o passar, os dois munidos de camcoders para salvar alguns frames um do outro.
A trama do filme é simples: anos 2000, computadores pessoais começam a ser acessíveis ao público. Haru e Hoshi se conhecem num fórum de cinema e logo passam para os e-mails (Haru e Hoshi são seus nicks). Ele é um ex-jogador de baseball tornado publicitário, ela flutua de emprego em emprego. As mensagens trocadas entre os dois cobrem a tela como haikus, desacelerando a rotina offline. Em comparação às pessimistas obras japonesas que tratam de comunicação e Internet lançadas na virada do milênio (All about Lily Chou-Chou, Kairo, Lain, qualquer coisa do Hideaki Anno), “Haru” é comportado e tranquilo.
Na cena em questão, temos a impressão de que o filme opera um zoom-out na relação por e-mail, encenando a distância e a velocidade elas próprias na realidade offline. “Achamos que nos conhecíamos”, parece dizer a cena, “mas estávamos sujeitos a velocidades e profundidades irreais demais.” As camcoderzinhas raspam um naco um do outro como se fincassem uma bandeira numa correnteza violenta. O outro ponto de referência a que se agarram é o gosto pelo cinema. Em fluxos e tráfegos intensos, sem isso ninguém encontraria ninguém.
Haru
Excurso ferroviário
Já que o trem e a câmera são as ferramentas do encontro-anceno, queria me demorar neles. A respeito do impacto da velocidade das locomotivas, automóveis e câmeras no imaginário, Kittler, via Virilio, comenta que a janela de um veículo em movimento é como um frame de cinema na medida em que transforma as pessoas em espectros cinematográficos, irreais e frágeis, coadjuvantes reservados à imobilidade. Se, pela janela do trem, pessoas e paisagens viram substância cinematográfica, no frame a soma entre maquinaria pesada e a delicadeza de bailarina das rodas nos trilhos vira um banquete audiovisual. Sujeitos a velocidades e distâncias - sugeridas por meio dos insert das mensagens - o filme põe Haru e Hoshi para se encontrarem sem de fato se encontrarem, como têm feito desde o começo.
Em Café Lumière (2003), de Hou Hsiao-Shien, releitura de Era uma vez em Tokyo (1953), de Ozu e um filme sobre trens, acompanhamos Yoko, doutoranda no começo da gravidez que insiste aos pais que não só não vai se casar com o namorado, como terá o filho sozinha. Se Ozu desenha as distâncias geracionais entre as famílias do pós-guerra e encena o lamento da geração mais velha diante da individualidade dos jovens (os trens nunca vistos como símbolo dessa distância), em Café Lumière os trens são o protagonista, e a incomunicabilidade atingiu um ápice que o naturalismo de Hou sabe que só pode sugerir.
Yoko vive em trens, ônibus e bondinhos seguindo os rastros de um desconhecido compositor tailandês. Seu amigo Hajime anda por Tóquio registrando a paisagem sonora ferroviária. Ele é presenteado por Yoko com um relógio homenageando o centenário do criador da Estrada de Ferro Japonesa. Ele a encontra dormindo em vagões e nós os encontramos quase se esbarrando em trens paralelos. Em vez de dizer que a ama, desenha no photoshop um cemitério ou útero de trens, onde nascerá um bebê com coração de relógio - ao mesmo tempo Hajime (“olhos tristes, está sentindo pena de si mesmo”, diz Yoko), a criança gestando no útero de Yoko, a cidade e o futuro.

A trama como trem
De que serve gravar barulho de trem? Hajime responde: como evidência para o futuro, ele espera, assim como Café Lumière se passa em cenários de forte carga tradicional, evidências de outro tempo.
É curiosa a ausência de comentários do diretor a respeito da fixação do filme por trens, em comparação com a abundância de comentários sobre os cenários históricos do filme. Nessa ausência, só resta especular.
Como na metáfora do trem-bebê-amor, o começo dos anos 2000 parece prometer muitos substitutos para a vida. Em dado momento de Haru, descobrimos que o que movia a relação epistolar para Hoshi eram dois fantasmas: a mãe e o namorado mortos. Ao invés de voltar a amar, opta pela relação “superficial” (sugere o filme), pulando de emprego e emprego, entretendo propostas de casamento esdrúxulas e vivendo relações pela internet. A suspensão da vida pela internet permite que ela mantenha os fantasmas vivos. Até o que mesmo o que dispara a relação por e-mail, que sustenta o filme, foi o fato de que o nick de Haru lembra o nome do namorado morto.
Mas após uma série de coincidências e peripécias, ela interrompe a troca de mensagens com Haru. A caixa de entrada vazia começa a pesar e, quando ele, por sua vez, desiste de se comunicar, seu silêncio revela para Hoshi o reconhecimento de que ele era um substituto para os mortos. Agora a trama pode lhe colocar a decisão entre a internet e a vida real.
Se uma trama pode ser metaforizada como uma locomotiva que precisa avançar, o interessante de Haru seriam, ao contrário, as paradas, os encontros perpendiculares, o que acontece nas interseções e cruzamentos que desaceleram os 200km de trens e cabos a uma velocidade humana: as conversa sobre cinema, as coincidências de gosto, o texto na tela, a vida que passa e precisa ser contada para um desconhecido, feito à imagem da nossa imaginação, para lembrarmos que existe.
Isso porque, quando a trama nos empurra peripécias e coincidências para dizer que não se pode continuar para sempre na internet, o filme (desculpem) sai dos trilhos, ou melhor, continua comportadamente neles. Os dois se encontram numa estação de trem, fim. A conclusão da história é uma banal vitória da vida real contra a fantasia da internet.
Hoshi, usuário da internet
Excurso alemão
Por puro acaso, li na mesma época em que assisti ao filme um romance epistolar (tambénm e-mails) passado na Alemanha de 2006, que por contraste me fez perceber algumas coisas sobre Haru.
Literalmente, “Bom contra o vento do norte”, referindo-se a como os e-mails ajudavam a protagonista a conseguir dormir à noite, hora que o vento do norte bate contra a janela.
O livro, Gut gegen Norwind, é um bestseller alemão traduzido para o português simplesmente como Amor. Embora encene todos os tropos de um webnamoro - a dependência por mensagens, a espera, a suspensão -, o que predomina no livro não é o derramamento de amor romântico epistolar ou a comunhão de gostos e personalidades, mas o sarcasmo. Ao contrário do Japão dos anos 2000, obcecado com os sonhos e pesadelos da internet incipiente, a Alemanha, a julgar por esse livro, estava preocupada com o fato, talvez, de que já estamos acostumados ao meladrama de uma carta de amor, e portanto é preciso ser esperto, sarcástico, schlagfertig, afiado.
Em Haru, os personagens são “honestos” em sua correspondência, contam sobre si e sobre a vida, se abrem e por isso passam a depender dos e-mails. Mesmo quando fingem ser outras pessoas, é ocasião para abertura. No livro, o que vicia um no outro é o humor sarcástico e esperto, como se o pressuposto fosse que o perigo de e-mails é soar como Goethe, enquanto no Japão, a nóia com a comunicação no século XXI roeu o cérebro de todo japonês munido de câmera e orçamento com a possibilidade da fantasia online substituir a realidade. Se lidavam com o “pesadelo da (auto) fabricação”, como é posto em Lain, e em Kairo com a tomada do mundo pela horda de depressão e solidão vazando das telas, Haru num só golpe diagnostica e cura, pressupondo que somos todos adultos, e não bebês com coração de relógio.
