Das folhas de conversa
Aí se tem uma ideia da tuberculose[,] no meio uma pedra facetada, do lado as serras, de resto só um vazio e seco escarro.
Dói assim porque não fiz nada com a laringe por várias horas? Uma irritação moderada eu sinto sempre.
O senhor não sabe nada a respeito de Schweninger, o médico de Bismarck? Ele estava entre a medicina tradicional e uma medicina natural desenvolvida inteiramente por conta própria, um grande homem, que passou dificuldades com Bismarck pois este era um glutão e um beberrão tremendo.
A pouca quantidade [de muco] e a ânsia constante provam que há algo obstruindo uma limpeza completa que deveria ser afastado antes de se tentar meios para tampá-lo.
Em algum lugar do jornal de hoje há uma notinha excelente sobre o manuseio das flores durante a colheita, elas estão terrivelmente sedentas, assim como esse jornal.
Um corte oblíquo, essa é quase a minha ideia para que elas possam beber mais. Cortar fora as folhas.
Um pouco de água, essas pílulas grudam feito cacos de vidro no muco.
Se o massa do macarrão não estivesse tão macia eu não teria conseguido comer nada, tudo também a cerveja me causa queimação
Comentário
Tradução minha dos bilhetes que Kafka, internado no sanatório onde morreria logo depois, usava para se comunicar quando a tuberculose já lhe tomara a fala. Tive que pressupor certas coisas, preencher lacunas. Mas em vez de discorrer sobre o que “significam” esses bilhetes, prefiro ensaiar a perturbação que me causam.
Várias coisas nessa página me perturbam: o fato de serem bilhetes escritos por um moribundo, a imagem dos filólogos recolhendo os papeizinhos feito ratos, o tom hagiográfico da canonização até mesmo de bilhetes, o fato de substituírem, praticamente encobrirem grunhidos impressos num livro chamado “Obras reunidas”.
Mas, por típica inversão kafkiana, é afinal disso que se trata, essa a mais-valia que nos legitima a profissão: a relação entre guincho - dos ratos, dos papeis, do crítico - e a comunicação objetiva impressa nas folhas, como em seu conto “Josefina”. Catar os papeizinhos, selecionar, carimbar como obra, nos recolhermos, não interpretar e deixar os grunhidos do grande homem falarem. Um crítico escreveu certa vez que, em Kafka, trata-se menos de obra “literária” que de “obra escrita”. Para ele, tudo “escrito” já era “literário”, apontando a importância da materialidade “a-significante”, “pré-verbal”, gutural do texto.
Os ratos filólogos e os ratos cantores da literatura kafkiana, submetidos à inversão (não guincham, cantam, nós é que não sabemos ouvir) deveriam ser argumento o suficiente para que eu abandonasse a imagem dos pesquisadores como ratinhos sedentos por papeizinhos e bilhetes marginais. Além disso, tenho 100 anos de alemães contra mim. Só resta ir às folhas feito ratos que não sabem cantar.