Pensamentos de avião
O serviço de entretenimento audiovisual inclui o mapa do mundo e o tempo de voo.
No monitor, voando lentamente a 783km/h, o avião é maior que o estado do Rio. Esse erro de escala é na verdade o fazer sentido da velocidade, quanto mais no céu, menos absurda.
Rotas aéreas: estradas visíveis para aparelhos. Tráfego aéreo: protocolos delicados de imitação do tráfego terrestre. Ninguém precisa ver céu ou mesmo aviões, pensou a companhia aérea, só forro branco e ar-condicionado.
Cruzar as pernas durante a decolagem é mal agouro. É preciso estar tão atento quanto as turbinas, ter mente de turbina, ou quanto os controladores de voo e os algoritmos atentos às variações no preço das passagens.
No céu real, não deveria caber elogio à técnica, apenas súplica e medo. Voo tranquilo só sob véu anestésico. Não só o dos filmes, também o da esteira higienizada que nos conduz da entrada do aeroporto até a solitária branca contra a qual deveríamos nos debater. Mas a suavidade de um giro em torno do próprio eixo desalinha todos os eixos, mesmo os da sobrevivência.
Voo suave, de repente turbulência. Sacudiu e estabilizou e agora tédio. Mas a nova estabilidade está grávida duma turbulência pior. A estrutura narrativa da turbulência é previsível e eficaz como o catálogo audiovisual.
O avião é um privilégio aos nervos, sempre alienados em terra. Não mantemos o sangue frio com uma arma na nossa cara, da qual nos distraímos assistindo o proverbial filme da nossa vida, mas no avião sim, ou assim ele quer. De alguma forma a aviação comercial gira ao mesmo tempo em conluio e contra os melhores interesses dos nossos nervos.
Leio sobre Santos Dumont. O interesse por mecânica começou com a escassez de máquinas giratórias na fazenda de café da família. “O futuro é mecânica, filho”, ouviu do pai, recebeu uma herança, estudou, imaginou um motor movido a petróleo. Café, petróleo, latifúndio: é isso o céu.
Leonardo da Vinci pensava que a aviação chegaria se se explorasse a mimesis da natureza. Dumont viu que, para efetivar essa mimesis, o avião precisaria abdicar da analogia poética e assumir a abstração: força e trabalho mecânico. O motor do avião não emula os ossos pneumáticos do pássaro, apenas obedece a abstrações newtonianas, de modo que, tal como uma pessoa em pleno ar, voar em si é absurdo.
Santos Dumont pragueja contra a guerra e lamenta o uso bélico de aviões. Como Miyazaki, queria que trouxessem felicidade, que a mecânica e a engenharia fossem muita estética e nenhuma violência.
A autobiografia de Santos Dumont. Apesar de abdicar da analogia poética na invenção, na escrita Dumont narra sua Bildung em estilo poético como qualquer outro. Sua escrita não segue os princípios que o transformaram em si mesmo. A escrita e a literatura seguem alienadas do voo, assim como as pessoas.
Por que me presto a essa situação? Aceitei as mentiras da aviação para poder lutar contra os fantasmas contra os quais lutam os transportes. Mas não aceitei de verdade, do contrário não estaria escrevendo.
No avião a escrita é real. Na iminência do colapso, buscar o caderno e palavras que farão frente com o que as provoca. Sintonizar duas curvas oscilantes que competem, a fim de desestabilizar os sistemas. No limite, é inútil, então não devo estar no limite. A escrita nas trincheiras sob bombardeio: controla o bombardeio interior que tenta se defender.
Por muito tempo quiseram civilizar o céu . É no departamento de marketing das empresas que deve se esconder a verdade, comercialmente indisponível, da inospitalidade do céu (consciência e comércio são aqui sinônimos). O termo "turbulência" parece ter escapado ao marketing, já que manteve seu ranço de linguagem técnica em plena área VIP . "Turbulência", portanto, deve ser pronunciada como se os garotos que vendem paçoca na entrada escapassem do guarda e invadissem o aeroporto.
Ninguém conquistou o céu, só abriram nele um buraco para respirarmos, para o que precisaram nos aproximar demais uns dos outros (“globalização”).
Alguém pensa em mim durante a viagem. Que isso realmente ajude a me manter seguro, não resta dúvidas, mas essa ajuda carece de explicação mecânica. Talvez seja que a força desse pensamento atinja a da turbina, que trabalha no limite para manter o avião no céu, não diferindo então de um anjo, da aparatosidade e eficiência com que os anjos aparecem.
Elogio/elegia
Ao avião da noite.
À luta do anjo contra a turbulência.
Ao metrô de São Paulo.
A chegar e partir.
Ao claustrofóbico horizonte e à serra.
À falta de mar.
A uma cidade de verdade.
Aos gritos do anjo sob minha rua de manhã.
Ao anjo que nos recebe no Purgatório.
Ao controle melancólico do PCC.
À Faculdade de Direito.
Aos turistas e bandeiras.
Ao rio que corta São Paulo.
Aos motoristas que sustentam a vertigem dos viadutos.
Às distâncias dantescas de Guarulhos.
Ao centro que não aguentou.
À vergonha do circuito artístico.
Ao McDonalds neoclássico.
Ao trabalho asiático.
Ao infarto do miocárdio.
Aos carros ruidosos
e ao anjo que veio dormir.
Aos anjos da malha aérea
cujas asas farfalham em retirada
nos deixando um imenso vazio.